terça-feira, 3 de maio de 2011

Ganga Bruta


Publicado n'O Estado de Minas, 1º de setembro de 1984, quando do relançamento do filme em Minas Gerais.)

"O último filme ‘Made in Cascadura’, que vimos na Cinelândia, tinha dois metros de celulóide, esticando uma bobagem que caberia nas costas de um selo. O público riu do drama até onde pôde e, quando não pôde mais, foi chorar o dinheiro da entrada na cama, que é lugar quente... " A bobagem a que o cronista Henrique Pongetti se refere é o filme Ganga Bruta, que poucos dias antes estreara na Cidade Maravilhosa, cercado por chacotas e piadas de mau-gosto. "Abacaxi da Cinédia", "o pior filme de todos os tempos"; o autor para muitos um "Borzage de São Januario", "Freud da Cascadura "; a produtora do filme — Cinédia — para outros, segundo outro, daria uma "esplêndida fábrica de goiabada", e por aí afora. O senso de humor do pessoal não era dos "piores": este tipo de recepção irônica a obras artísticas que fugiam ao senso dominante não era e não é novidade: anos antes, o poeta Augusto dos Anjos fora malhado impiedosamente pela crônica local; outro filme, Limite, recebera também críticas hostis, e etc. e etc.

Quando da primeira exibição Ganga Bruta rendera parcos quinze mil réis, sumindo logo depois de circulação. Graças a Carl Scheiby ele foi resgatado: remexendo nos arquivos da Cinédia ele encontrou os negativos; remontou-o (com aprovação tácita de Humberto Mauro) e exibiu-o em 1952 na 1ª Retrospectiva do Cinema Brasileiro, obtendo então consagração. Assim, depois de considerado praticamente perdido, o filme ressuscitou por um acaso fortuito. Agora, graças ao empenho de empresas privadas, do governo Estadual e da Embrafilme, pudemos tomar contato com esta obra praticamente inédita para a novíssima geração; Infelizmente, só pude assisti-la uma vez, quando da abertura da mostra, cabeça sob leve efeito do coquetel e do blá-blá costumeiro que acompanha tais eventos; sendo assim, minha impressão inicial foi de perplexidade pura. Depois, o processo gradual de reconstruir as imagens na mente, o papo com os amigos a respeito, quando então podem surgir observações curiosas — "achei machista" — analogias — lembrei os melodramas de Fassbinder... coisas de saída de cinema, que, afinal de contas, pertencem de certa forma ao objeto fílmico. Então pude ter uma impressão mais ou menos geral da obra. Pode-se dizer que estou assistindo-a há uma semana. "Ganga", segundo a definição de Aurélio é um "resíduo, em geral inaproveitável, de uma jazida mineral"; e "um tecido forte, azul ou amarelo".

Ganga bruta: um engenheiro mata a esposa na noite de núpcias. Motivo: ela o traía. Só teremos certeza disso no decorrer do filme, quando, em "flash-back", ele rememora o namoro, as suspeitas, o noivado e, por fim, o crime. E absolvido (como vêem, a história, afinal de contas, é assaz conhecida...) por unanimidade e refugia-se no interior (na dupla acepção da palavra). A metáfora obviamente remete ao engenheiro Marcos Resende, que após o crime torna-se um resíduo duro e forte como um minério, e justifica-se tendo em vista ser ele um engenheiro. Neste entrelaçamento de imagens, metáforas e alegorias, Humberto Mauro narra a sutil transformação de Marcos, inserida sempre num contexto marcadamente sensual, plástico, feérico e impressionista. O que sem dúvida atrai e surpreende em "Canga Bruta" é esta forte carga de sensualidade, captada magistralmente por movimentos de câmera expressivos, nitidamente sensuais no modo como se aproximam dos objetos. Como já observou Glauber, este "é um filme (...) concebido com absoluta maturidade". Humberto Mauro a consegue de maneira algo despretensiosa, vezes desequilibrada, utilizando efeitos naturalmente da época, como exemplo o excesso de metáforas (que, como já percebemos, iniciam-se a partir do próprio título) facilmente constatáveis tanto no cinema que se fazia quanto na literatura. Deve-se registrar, já que falei em literário, este natural parentesco literário (que afinal de contas atingiu na época proporções maiores, vide Semana de Arte Moderna de 22, movimentos europeus de vanguarda) que a obra de Humberto Mauro apresenta, sem esquecer que boa parte de seus primeiros filmes realizaram-se sincronicamente à existência da revista "Verde" de Cataguases. Em Ganga Bruta traços de José de Alencar podem ser discernidos sem maiores esforços, que, felizmente, não influenciam muito.

Alguém já notou que se Humberto Mauro tivesse se tornado romancista sua contribuição para nossa cultura teria sido nula; felizmente ele resolveu contar suas histórias em imagens. E aí sua contribuição é inigualável, além de viva.

Assistam Ganga Bruta, esqueçam a lorota do deslumbrado articulista e confiram. Garanto que não irão chorar o dinheiro da entrada na cama, as poltronas do cinema (nem todos é claro) também são quentes

Um comentário:

Viviane Wehdorn disse...

Ótima crítica! Parabéns!