terça-feira, 31 de julho de 2012
A Carne - 1975
Ao que consta foi a terceira adaptação da obra de Júlio Ribeiro. Não tive até o momento muito ânimo para ler o livro, pelo fato de não ter muita paciência com naturalismo literário. Comentar dessa maneira um filme adaptado de um livro tem até um lado bom, pois evitamos as comparações quase inevitáveis que poderiam ocorrer entre um e outro. É curiosa a observação sobre o filme, na wikipedia: o livro causou polêmica e escândalo nos tempos do império, o filme, no entanto, lançado no auge da pornochanchada passou despercebido. Os tempos eram outros. A Boca viveu em toda a sua trajetória, um conflito interno: havia a necessidade de atingir o povão, com o erotismo, mas por outro lado os produtores buscavam vez ou outra dar a algumas produções um verniz mais artístico, filmes voltados para um público seleto. Para isso uma das táticas era recorrer às adaptações de clássicos da literatura nacional, principalmente aquelas que já haviam caído em domínio público. Melhor ainda se a obra tivesse alguma aura de erotismo, e no caso do livro de Júlio Ribeiro, havia isso de sobra. Talvez seja o romance de mais alta carga erótica explícita da nossa literatura no séc. XIX. Só lembrando que José de Alencar e Macedo também tiveram obras adaptadas para as telas. O filme foi lançado dentro desse contexto de buscar um público mais sofisticado e a aceitação da crítica. Funcionava? Alfredo Sternheim , que adaptou “Lucíola” baseado em José de Alencar , lembrou em entrevista que a recepção ao seu filme foi negativa e de deboche da crítica. Não havia escapatória. Ou era paulada comendo solta ou então restava a indiferença e o desprezo. Coube ao que tudo indica essa sina ao filme de J. Marreco, considerando que quase nada se encontra sobre ele na net. “A Carne” se não tivesse nenhuma qualidade já valeria a pena somente pela presença deslumbrante de Selma Egrei. Mas felizmente o filme tem outras boas razões além da presença melancólica e sensual da atriz: um bom roteiro, escrito por Antônio Bivar e Antônio Calmon, a direção sensível do diretor J. Marreco, mineiro oriundo de Belo Horizonte, que fez carreira na Boca do Lixo exercendo várias funções, e a boa fotografia. Aos que supõem que os filmes da Boca são histericamente sexuais e calhordas - os velhos preconceitos de sempre- o filme impõe ao espectador uma narrativa calcada no intimismo e nas nuances, tingidos pela melancolia. Há uma preocupação com a verossimilhança histórica: o fim da escravidão e todos os dramas e estigmas decorrentes bem inseridos e rondando os senhores brancos, personagens da ação. Enquanto estes discutem e tentam fazer o sexo ( a carne), o elemento que move todos os gestos e passos dos personagens da casa grande, na senzala o chicote e o tronco falam a linguagem da dor na carne negra e desamparada. Lenita (Selma Egrei) uma jovem órfã, inteligente e culta (fato raro na época)que não tem outra opção na vida, após a morte do pai, que não seja se mudar para uma fazenda e passa a ter a companhia apenas do velho senhor. Solidão e isolamento. Havia um filho, mas sempre ausente. Esperança de amor, volúpias imaginárias. Decepção no primeiro encontro em uma cena memorável. Lenita se desespera ao constatar que o filho Augusto, era velho, esquisito e longe dos padrões imaginados por ela. Apesar do choque inicial ambos se aproximam e acabam se relacionando. O sexo , as taras, a libertinagem: “Sou moça, sou rica e quero gozar”; “Você foi a mulher mais devassa que já encontrei”. Ele é falado, discutido, mas o diretor opta pela suavidade e delicadeza, expondo o belo corpo de Selma Egrei em fugazes, mas belos, momentos. Tudo é sexo, mas a sensualidade carnal é um elemento ausente do filme, pelo menos da maneira que o público da época desejaria. Aos filmes saídos da Rua Triunfo só era permitido a truculência visual, técnica e a libidinagem . Aos que ousassem transpor essa fronteira, só restava o limbo e o esquecimento. Lenita, metáfora perfeita do cinema da Boca, não pode levar até as últimas consequências a paixão por Augusto, homem casado e cansado, e só lhe resta fugir e aceitar o jogo da sociedade. O filme ainda espera por uma edição decente em DVD, e pode ser encontrado na net numa cópia sofrível, mas é a única possível.
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3 comentários:
Fernando: Parabéns pelo belo e justo comentário sobre o filme! O dito cinema da boca-do-lixo paulistana ainda será (re)visto com a importância devida.Abs.
Oi Gilmar, obrigado. Acho que tá acontecendo alguma coisa . Melhorou um pouquinho. Duro é o desprezo de muitas cabeças ditas inteligentes que nivelam tudo por baixo. E que comecem a sair boas edições em dvd né?
Monica Vitti ou Matilde Mastrangi? Cláudia Cardinale ou Zilda Mayo? Laura Antonelli ou Helena Ramos? Sem comparar, mas só pra saber: as musas de lá são melhores que as de cá? As tais cabeças inteligentes poderiam explicar... E diretores do calibre de Jean Garrett, Fauzzi Mansur, Ody Fraga, Sternheim e Tony Vieira, entre tantos outros, não ficam nada a dever aos seus pares internacionais. Já passou da hora de os editores de DVD resgatarem o cine da boca-do-lixo paulistana! Abs.
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